O papel do exemplo para construção do sujeito ético em Sêneca

O recurso dos exempla foi bastante disseminado em Roma. Seja para enfeite retórico ou como guia moral, como era o caso do filósofo romano Lúcio Aneu Sêneca, que chegou mesmo, no fim de sua vida, a inspirar seus leitores e tornar-se, ele mesmo, um desses exempla. Na Carta 98, ele cita várias figuras exemplares, a fim de sugerir a Lucílio: “Façamos nós também algo que mostre grandeza de alma; sejamos nós também um exemplo” (Carta 98,13). Aprendemos a agir vendo alguém a agir, observando casos reais, em outras palavras, por meio das experiências de vidas.

Homens que souberam superar a dor, o sofrimento, a pobreza, o exílio e até a morte com firmeza de alma[1], esses homens que mantiveram coragem para suportar todos os reveses da vida constituem excelentes ilustrações daquilo a que todos deveríamos almejar, pois nos mostram que é possível. Sêneca afirma que “não foi a escola, mas sim a convivência com Epicuro que fez de Metrodoro, de Hermarco, de Polieno, grandes homens” (Carta 6,6) Foi a convivência com o bom exemplo que lhes possibilitou tornarem-se grandes homens. Tal passagem nos faz refletir que é a vivência que realmente importa, é o viver filosoficamente, tão caro na filosofia de Sêneca, que torna os homens grandes figuras exemplares.

Sem dúvida, Sêneca escolheu fazer o mesmo que fizera Sócrates: encarou a morte com grandeza de alma. Não podemos esquecer que Sócrates é o grande exemplo que serviu de inspiração para os estoicos. Um dos homens que podem ser considerados sábios, se é que o sábio realmente existiu, Sócrates, para Sêneca, seria o modelo de firmeza de alma. Tal modelo de virtude é visto como uma inspiração para aqueles que ainda estão em processo de aperfeiçoamento moral, pois este contempla a ideia de que é possível tornar-se virtuoso e de encarar as adversidades com firmeza de alma.

A imitação de exemplos era uma prática essencial para a vida social em Roma, tanto para a produção literária quanto para a educação moral. O apelo a figuras exemplares na sociedade romana operava em diversas formas. Uma dessas formas é o exemplo doméstico que consiste em escolher um familiar que serve de inspiração para a formação moral. Sêneca expõe esse modelo no tratado Sobre a clemência[2] num contexto em que ele propõe ao jovem Nero uma descrição dos Augustos, os imperadores que o antecederam no poder, como modelos a seguir[3]. Além da família, a sociedade também é um lugar no qual pode-se encontrar exemplos ou como servir de inspiração ou de exemplos para se evitar.

Apesar de, nas Cartas a Lucílio, Sêneca usar um número menor de exemplos[4], podemos perceber que além dos grandes exemplos a serem seguidos, ele cita alguns exemplos que devemos evitar. Sêneca descreve a Lucílio o estilo de vida de Mecenas, que não pode ser visto como um tipo de conduta a ser seguido, pois sua conduta como homem era totalmente reprovável aos olhos de Sêneca, visto que empregou todo seu talento e poder financeiro com os vícios. Para Sêneca, “os seus requintes predilectos, o seu exibicionismo, a sua recusa em ocultar seus próprios vícios. Pois bem: não é verdade que o seu estilo era tão desprovido de firmeza como a sua túnica era desprovida de cinto?” (Carta 114,4). Assim, se podemos nos espelhar na vida de algumas pessoas, outras mostram que tipo de conduta devemos evitar.

Sêneca está tentando incentivar Lucílio em face dos seus piores temores. Rutílio, Catão (o novo), Múcio são pessoas que souberam enfrentar as adversidades com firmeza de alma, por isso são vistos como grandes exemplos. Tais figuras exemplares são lembradas por Sêneca, principalmente a figura de Catão, pois servem como horizonte para aqueles que estão em busca da fortaleza interior. É como se nosso autor estivesse dizendo: “veja como é possível, tais pessoas conseguiram, você também pode”.

A figura exemplar é antes de tudo uma imagem viva que se deve ter como inspiração para a vida. Não nos passa despercebido, como, para Sêneca, vida e filosofia são inseparáveis. O exemplo é uma mostra viva de que os homens podem transformar suas vidas e que acima de tudo estes podem alcançar um estado de espírito tão forte que serão capazes de não se deixar afetar, ou se afetar minimamente com aquilo que não está em seu poder de mudar.

Acreditamos que todos os esforços[5] de Sêneca para se tornar uma figura exemplar foram válidos. Não só o esforço de entrar para a lista dos grandes exemplos da história da humanidade, mas todos os esforços para conduzir Lucílio à filosofia. Sêneca compreendia que o processo de formação moral não é uma tarefa fácil, é um exercício diário contra os vícios e de aceitação das adversidades, e não só de aceitação, mas de reformulação dos nossos juízos equivocados, que nos fazem acreditar que todas as coisas que acontecem contra nossa expectativa são um mal. O que ele nos indica é um caminho exigente, pois é muito mais fácil nos deixarmos levar pelas paixões e termos uma vida irrefletida, mas isso não quer dizer que seja impossível[6] seguir o caminho da moralidade. Não existe restrição: qualquer homem pode escolher aperfeiçoar-se moralmente, a exigência mínima é o querer.

Tendo em vista os apontamentos senequianos sobre o papel do exemplo para construção do sujeito ético, termino esse texto com alguns questionamentos para pensarmos sobre essas questões mencionadas ao longo do texto : o seu modo de vida pode servir de inspiração para outras pessoas? Ou você está no grupo de pessoas que fazem parte do exemplo que devemos evitar?

 

Aryane Raysa Araújo dos Santos

Professora de Filosofia.

Mestre em filosofia pela UFPI.

 

Referências bibliográficas:

MAYER, R. G. Romanal historical exempla in Seneca in Oxford readings classical studies Seneca. Oxford: Oxford University Press, 2008.

SÊNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

______. Tratado sobre a clemência. Tradução de Ingeborg Braren.Petrópolis: Vozes,2013.

ZAMBRANO, Maria. El pensamiento vivo de Seneca. Madri: Ediciones Cátedra,1992.

 

NOTAS:

[1] Por firmeza de alma Sêneca compreender como a capacidade de lidar com as adversidades com coragem, sem deixar sucumbir pelas dores e sofrimentos que acometem os homens ao longo da sua vida.

[2] Cf. IX,1.

[3] Sêneca não poderia atacar a família da qual Nero passara a fazer parte, por isso não descreveu nesse contexto os modelos a não serem seguidos.

[4] Tal tese foi defendida por Mayer no seu artigo intitulado Roman historical exempla in Seneca. A referência completa encontra-se no final do nosso trabalho.

[5] Maria Zambrano nos oferece, no seu livro El pensamiento vivo de Seneca, uma discussão acerca do alcance de sua teoria na atualidade.

[6] “Para seres um homem de bem só precisas de uma coisa: a vontade” (Carta 80,4).