por Lenise Moura Fé de Almeida
Para falar sobre a “vida de filósofa”, posso começar parafraseando – quase de forma barata – a tão célebre frase de Simone de Beauvoir e dizer então, “Ninguém nasce filósofa: torna-se filósofa”. Ora, é bem verdade que se há algo que caracterize o humano, na filosofia existencialista beauvoiriana, é a liberdade do projetar-se, do tornar-se aquilo que se é. Entretanto, aqui o sentido do “tornar-se filósofa” é outro. Me permitam a ironia anunciada, mas não falo daquela disposição de espírito, ou da potência do logos, que tão comumente se atribui à capacidade do filosofar do homo sapiens, sem gênero, sem cor, sem classe social, que de forma quase romanesca está preparado para o pathos filosófico e as grandes perguntas (que dizem) “capazes de mudar a história”. “Tornar-se filósofa” no século XXI é aderir, em primeiro lugar, a um padrão acadêmico vigente. E nesse padrão, a categoria (ou qualidade) de “filósofa” é claramente um tabu.
Há uma confusão entre os títulos alcançados e o direito de afirmar-se, enfim, “filósofa”. Porém, o maior desafio na “vida de filósofa” é mesmo reconhecer o que significa ser filósofa em um ambiente cuja formação teórica exclui completamente e trata como um nada o legado feminino na história da filosofia. Mesmo para as, digamos, jovens filósofas que tiveram suas graduações concluídas nas primeiras décadas dos anos 2000, não é incomum que desconheçam completamente a presença de mulheres filósofas desde a Grécia antiga em todo legado filosófico até aqui. Quando muito, algumas nos foram apresentadas como companheiras, amantes ou mesmo interlocutoras perspicazes de alguns grandes pensadores. Mas, além da ausência de filósofas, na formação de filósofas, impostas pelos manuais de filosofia e as grades curriculares (que aliás, nunca pensei ser um termo tão adequado: grades, cercas que de-limitam, impõem as fronteiras…), algo não falta aos muros das academias: a presença da onipotente representação das mulheres pelos filósofos… E, nesse caso, como são presentes as piadas contra Xantipa e seu temperamento que, no final das contas, para a piada ter efeito, é caracterizado como um estereótipo do “feminino”; ou as ilações contra Lou Salomé que não são dignas de serem repetidas ou registradas aqui. Há um padrão sexista e, podemos dizer, até mesmo misógino, apesar da presença inegável de mulheres nos departamentos de filosofia e nas cadeiras dos discentes acadêmicos. Essa presença, ainda que tenha importância colossal, não representa definitivamente – na mesma medida – a inclusão das filósofas na filosofia.
Esse padrão ao qual me referi, e pelo qual todas nós fomos amoldadas para conquistarmos os títulos necessários até, enfim, ostentar a qualidade de filósofa, nos impõem alguns caminhos que costumam ser solitários e insustentáveis (se não fossem os grupos e redes que têm surgido com tanta força no que algumas tendem a declarar como a “primavera das filósofas”). Mas o fato é que, assim como toda pesquisa científica, nossos projetos precisam estar inseridos em instituições e, também, assim como qualquer pesquisadora profissional, precisamos de fomento (ou no português mais claro: precisamos de salário como qualquer trabalhadora). Daí se pode deduzir o círculo vicioso inerente a essa realidade aqui exposta. Para não cansar as estimadas ouvintes, podemos concluir de forma breve que a “vida de filósofa” é uma vida de empenho e dedicação aos moldes acadêmicos para “tornar-se filósofa” e, só então, rompermos diariamente as grades e construirmos o verdadeiro ser filósofa.
*Texto preparado originalmente para o podcast Elas em Rede.