Diga-me com quem andas!

Nossas avós já nos alertavam sobre a importância das boas companhias e, embora exagerassem nas prescrições, tinham lá suas razões. Hannah Arendt, filósofa alemã, nos assegurou que julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presente em nosso espírito algum incidente e ou alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplo para nós (2004, p. 211), disse-nos que há muitos desses exemplos, que eles podem estar no passado remoto ou entre os vivos (Idem) além disso, afirmou ainda que estes não precisam ser factuais, podem mesmo ser uma realidade histórica ou fictícia (Idem).   Os exemplos sobre os quais versou Arendt, uma vez junto a nós, nos possibilitam um melhor julgamento ante as questões morais hards, aquelas que exigem juízos que excedem o escopo do imediato ou que não se limitam ao caráter pragmático de uma ação ou situação e, nos auxiliam a movermo-nos com mais responsabilidade nos espaços públicos. Considere-se com isso, o fato de não se poder dissociar o ato individual de uma teia de relações, onde o autor confidencia no feito, ainda que inconscientemente, outras vozes.

O amor mundi, que à luz do pensamento de Arendt, é um conjunto de compromissos que compartilhamos com “outros” e que é relativo ao mundo comum, exige de todos nós uma tomada de decisão e pede que façamos escolhas responsáveis, logo, demanda o uso de um juízo reflexivo. Ao fazê-lo, consultamos, em termos arendtianos, “nossas companhias”, aquelas com quem dividimos assuntos comuns, e também aqueles que escolhemos trazer conosco, na memória, na imaginação, no coração, que são nossos exemplos; deste modo, nunca estamos isolados quando tomamos uma atitude moral. Agir responsavelmente depende, nesse sentido, de estarmos em boa companhia e, ao tomar decisões morais acerca do mundo e dos outros, evidenciamos aqueles dos quais nos aproximamos durante a vida, exercício que faz vir à superfície: nossas tradições, nossas raízes e ancestralidade, mas, mostra igualmente, quem são aqueles em quem confiamos agora e de quem validamos as ações.

Isso está relacionado com a inerente capacidade humana de pensar que implica, consequentemente, em julgar e determinar com quem desejamos estar juntos, pois nossas ações nunca são desenraizadas ou aleatórias, ao contrário, dependem sempre das escolhas daqueles com quem desejamos passar toda nossa vida (ARENDT, 2004, p. 212).

Não vos enganeis! Se x é próximo de y, há algo do qual compartilham. O problema reside no fato de que algumas pessoas não refletem sobre quem mantêm perto de si, ou seja, existem aqueles que estão tão isolados no mundo que se tornam indiferentes quanto àqueles com quem convivem ou se aliam (vivos ou na memória), e já não dão o peso devido a esse regime de solidão e insulamento, e, por ser assim, por esse estado de irreflexão, qualquer um lhe acompanha – o que em termos morais e políticos tem implicações nefastas.

Convenhamos, trazer Hitler e Mussolini consigo não pode ser considerado o mesmo do que ter como companhia Gandhi  e Jesus Cristo.  O problema todo é que seguir maus exemplos ou ser indiferente quanto ao agir no mundo, evidencia incapacidade de julgar sobre a moralidade de um ato, revela alienação do mundo e, escancara, sobremaneira, um desgosto e uma recusa da política, o que se configura em ausência de amor mundi, e, está inteiramente vinculado ao horror que se alastrou pelo mundo a partir da segunda guerra mundial, que Arendt nomeou de mal banal- uma sombra que ainda paira sobre nós.

Como a educação ou a formação dos humanos pode se valer desta reflexão acerca do exemplo e da escolha de companhias nos momentos de tomada de decisão do agente moral? Ora, àqueles que se põem a cuidar dos novos, não cabe a indiferença frente ao mundo – todo educador faz escolhas em relação ao mundo e à sociedade que quer construir, fabricar, ao mesmo tempo, julga e se responsabiliza por suas escolhas – e, ao realizar tais ações, demonstra para aqueles a quem está educando suas preferências e o que fundamenta suas escolhas, isso, consequentemente, faz com que as novas gerações sejam provocadas a pensar, e vá se preparando para hora de fazer a seleção de suas companhias.

Como o fio que trazia o passado até nós foi rompido e nos encontramos hoje sem corrimão, uma instabilidade nos atravessa e, talvez alguns exemplos soltos, extraídos de algum episódio pretérito importante e trazidos por aqueles que apresentam o mundo aos novos, os educadores, possam lhes ajudar a lidar com esse tempo nosso, de normas, regras e valores fugazes e que cultua apenas o presente.

Em termos de transmissibilidade, de educabilidade dos sujeitos, quando nos referimos aos exemplos, literalmente, olhamos para a história dos saberes e para as práticas humanas, e, para forma como são construídos, apreendidos e repassados para os novos, e observamos como em todas as áreas de conhecimento e na vida, seu desenvolvimento ocorreu a partir de desdobramentos e incrementos do que foi exemplo num determinado paradigma ou tradição e foi sendo ressignificado, rompido, recriado, desfeito, refeito.

Embora haja mais rupturas que continuidades na história dos saberes e nas práticas que envolvem a vida humana os exemplos são referências para sucessivas gerações, que fazem novas escolhas e vão criando, re-ssignificando, refutando aquilo que já não suportam que siga em sua companhia. Esse é o caso em quase todas as ciências e, o é também quanto aos modos de vida prática. Se agora os novos desenvolvem tecnologias, micro e nano, é porque perceberam nos seus ancestrais uma habilidade para téchnē; alguns feitos vultosos pretéritos os incitam. A partir disso, vão demudando sua história e a história do mundo e, fabricando artefatos conforme as demandas do tempo; os exemplos que caem nos ombros de uma nova geração são como fogo que incendeia, lhes provocando a empreender novas buscas, a se rebelar ou acomodar, a ajuizar sobre aquilo que lhes fora caro, para poder transformar o que for pesado como fardo e conservar aquilo que ainda lhe inspirar. Isso corrobora e amplia brevemente o entendimento de que nunca andamos sozinhos e que a escolha de nossas companhias é facultada a cada um de nós.

Maria de Jesus dos Santos

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.